quinta-feira, 24 de julho de 2014

Revolução


Após três semanas de recesso, voltei ao ensaio do coral. Ensaiaríamos uma nova canção. Após ler a linha do contralto, o regente convidou a unir todas as vozes naquele trecho. De repente, caiu um cisco no meu olho e eu não podia me conter. Tossi, bocejei (afinal, lágrimas saem quando se boceja, às vezes), e a companheira de contralto do meu lado me olhando. O trecho era esse:

tu boca que es tuya y mía
tu boca no se equivoca
te quiero porque tu boca
sabe gritar rebeldías

(...)
te quiero en mi paraíso
es decir que en mi país
la gente viva feliz
aunque no tenga permiso


Acho que nunca cantei em grupo com tanta emoção e iminência de embargo na voz. Nada saiu perfeito, era a primeira leitura em grupo. Não importava. Saí do ensaio com o meu idealismo reafirmado.

Nunca fui pessimista, fatalista, "realista", apesar de já ter tentado. Por outro lado, nunca tive o típico perfil "revolucionário", de participar de movimentos estudantis, usar boina e baby look do Che Guevara (mentira), acompanhar diretamente os movimentos de esquerda ou direita (a não ser na dança e nas artes marciais), ou sabe-se lá o que são os partidos políticos atualmente. Até hoje não suporto aquele tipo de gente que aumenta o volume da voz para "convocar as massas para a revolução", seja em horário de propaganda eleitoral, seja em reunião de professores na universidade. Gente cuja bandeira é a da "resistência", sobretudo a novas ideias, posturas e possibilidades de diálogo - o termo "teimosia" ou "chatice" seriam mais adequados. E com tantos estereótipos quase automáticos, acabei tomando birra da palavra "revolução".

Aí saí do ensaio do coral pensando sobre o significado da revolução. Fui ao dicionário e, antes do conceito político ou de menções históricas, lá estava: "ato de revolver". E buscando em "revolver": "mexer", "misturar". E então me dei conta do quão revolucionária eu buscava ser, educando o meu filho, lutando para manter a família em harmonia, as contas em dia, mudando de cidade, realizando os projetos idealizados, resistindo à imediatez e à impessoalidade do mundo, saindo da minha zona de conforto, buscando novos limites para o corpo e para a alma, me dedicando de todo coração ao ofício de professora. Todo dia eu me revolvo, adubo, rego, planto e colho, afinal.

Esse negócio de viver é muito revolucionário.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Uma gota é muito



Aquele movimento não intencional provocado por algum misterioso magnetismo
(que te leva a outras vidas, épocas, possibilidades e novos movimentos)
mostra, em seus turvos caminhos, que o tempo é um só e a vida é um loop;
que passado, presente e futuro diluem-se num agora potente e pesado
de memória, vontade e medo.
Um concentrado de todas as cores e sons:
borrões ruidosos intragáveis e irreconhecíveis em dose única,
colocados em vidros pequenos e administrados em conta-gotas
para tornar mais convincente o autoengano da normalidade.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

No dia em que saí do cronograma


Um dos sebos descobertos no dia em que saí do cronograma


Resolvi dar uma volta.
Indo na direção oposta à da caminhada habitual, descobri quatro sebos perto de casa.
Não estudei e os livros tão esperados chegaram pelo correio.
Não me dediquei aos trabalhos pendentes e acabei encontrando novas fontes de pesquisa.
Não escrevi no blog e me deparei com alguns livros de cabeceira do passado. 
Saí também da dieta, e encontrei sobre a mesa da cozinha um pacote de bolachas, daquelas que eu comia na infância, esquecido por uma amiga.
Esqueci-me dos problemas da vida prática e descobri que eles estavam resolvidos. 
Assim como no dia em que eu o fiz e como nos dias em que o cumpri, no dia em que saí do cronograma eu fui feliz.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Silêncio


Família passeando no Beco do Batman. Foto: Mauro Ueda
E se algo quebrar o silêncio, que seja a risada do nosso filho ou a porta se abrindo pra você chegar.
Hoje é dia de respirar fundo e sorrir com os olhos fechados.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Violeta de Outono no meu inverno


Capa do disco homônimo, o primeiro deles, de 1987

As "minhas" bandas mais amadas eu não descobri na internet, mas nos sebos. Assim aconteceu com Yo La Tengo, Kula Shaker... e Violeta de Outono. Caminhei tanto pelo centro de Goiânia carregando esse disco aí da foto pra cima e pra baixo, dentro do meu discman. Passou comigo por tantos lugares, dentro e fora da alma. As canções melancólicas, repetitivas como mantras, me tiravam constantemente na realidade do sol quente, do calor dentro do ônibus, do horário da aula, dos trabalhos da faculdade. Porque são sombrias e densas, ao mesmo tempo com um frescor que devia vir do timbre (então) jovial das vozes, do minimalismo criativo de seus ritmos, do uso "oriental" das escalas menores e das cores frias.

Sempre tive um carinho gratuito por quem gostasse de Violeta de Outono. Porque era raro, pelo menos pra mim, em Goiânia, encontrar pessoas que a conhecessem. Da época da faculdade, uma das minhas bandas goianas preferidas chamava-se Orquídeas, claramente inspirados nela, no som e no nome. Orquídeas fez poucos shows; vazios, se bem me lembro, mas cheios de sorrisos meus.

E assim me sentirei hoje, no meu primeiro show da Violeta de Outono, que já têm 30 anos de banda, quase a minha idade. Certeza que vai estar lotado, que eu já gosto muito de todas as pessoas que vão estar lá e que eu mais uma vez vou ficar imóvel e comovida, dentro da minha bolha musical, lembrando de tantos momentos corriqueiros no centro de Goiânia e de que eu ainda tenho muitas experiências como esta pela frente. Meu inverno em São Paulo é florido e tem cor de Violeta.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sobre âncoras e trampolins


Como se concentrar nos estudos, aprofundar o pensamento, conhecer melhor alguém, ter consciência do próprio corpo, ditar o próprio ritmo - que não é ou não deveria ser o da pressa automática do mundo - , sem algo que nos tensione, desafie, verticalize ou simplesmente nos convide ao mergulho? Como ser adulto, despedir-se da casa dos pais e criar novas raízes, vínculos, discursos, sem ter qualquer referência, sem se lembrar da infância ou nada ter aprendido, colecionado, compartilhado enquanto antigas raízes nos mantinham em um lugar para onde, ocasional e disfarçadamente, queremos voltar?

Como saltar, enfrentar o medo, superar o tédio da comodidade programada e pular para o desconhecido sem pensar no que há nos bolsos, no penteado prestes a desmanchar ou se o relógio é à prova d'água? Como se lançar no abismo sem o necessário impulso, entusiasmo, oxigênio e vontade de um mergulho profundo?

Os trampolins nos levam às âncoras.
As âncoras norteiam. Suportam o peso da escalada para que avistemos - e saltemos - de novos trampolins.





terça-feira, 1 de julho de 2014

Cantar é difícil


Porque assumir seu próprio timbre é se expor da forma mais honesta. Porque o que vem de dentro emociona muito mais e por isso está mais fora de controle. Porque a emoção deixa a voz embargada, a respiração inconstante, as notas oscilantes. Porque você precisa respirar profundo, vibrar e expulsar energia de si para acontecer. Porque é preciso experimentar, se conhecer, buscar os lugares de cada nota, vogal ou consoante dentro de si mesmo. Porque cada coisa vai vibrar em algum cantinho. Por isso: porque você precisa explorar lugares dentro de si, para poder se lembrar e voltar a eles quando quiser. Pelo fato de você ter, na liberdade das mãos, a possibilidade do gesto. Porque se conhecer se expondo assim exige coragem e generosidade consigo próprio. Cantar é difícil. Cantar é preciso.