sábado, 29 de novembro de 2014

Entra em beco, sai em beco: de quando algo nos escolhe


Tio Pedro

Tenho a pretensão de muitas vezes sentir que estou escolhendo o filme a que assito, o livro que leio, a música que ouço. Ajo, sim, mas não sozinha; ajo em comunhão com uma série de conexões do acaso (ah, essa coisa linda chamada acaso). Muitas coisas a escrever sobre isso. Como quero fazê-lo lentamente - prolongar esse prazer -, deixo aqui apenas a última ocorrência. :)

Ontem estava eu em um sarau muito agradável. Não conhecia ninguém a não ser meu amigo - aquele que uma vez me contou sobre o seu silêncio dos gorilas em Ruanda -, que, por sinal, não havia chegado. Tirei timidamente meu violino do estojo, comecei a ensaiar algumas melodias improvisadas sobre as canções que o grupo entoava. Assim foi fluindo até que me sentisse muito à vontade e compartilhando com todos o grande prazer que é fazer música despretensiosamente.

Até que os músicos dispersaram, foram comer, conversar. Alguém sugeriu colocar um som mecânico naquele intervalo. A anfitriã foi escolher o disco, enquanto estávamos na rede. Introdução da música. Não reconheci. Até que Gilberto Gil começa a cantar: "fui passear na roça, encontrei Madalena...". Arrepio da cabeça aos pés. A música que há mais de 20 anos eu não ouvia. Aquela que eu conhecia somente pela voz do tio Pedro, que partira há quase 19 anos de forma trágica. Um sorriso e uma saudade enormes, e eu comecei a cantar os versos que passadas duas décadas eu conhecia inteiros. E o tio Pedro ali comigo, naquele momento e lugar de prazer, conversa, comilança e gentes alegres - daqueles lugares onde se podia encontrá-lo. Um dia antes do sarau, sua imagem jovial de despojado charme ao violão havia sido compartilhada por minha prima (filha dele) na internet.

Guardo o disco de vinil que ele gravou com muito zelo. Suas músicas e trejeitos "a Caetano". Seu sonho de ser cantor. As brincadeiras conosco ao violão. Que coisa linda eram as tardes, noites, dias de festa ou qualquer dia em sua companhia. Ontem eu pude desfrutar de forma especial um pouquinho dela.

Epifania musical. Uma de tantas e a mais intensa em muito tempo. E pensar que isso acontece o tempo todo - basta que esteja atenta.




segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Correspondências


Hoje eu enviaria cartas. À amiga saudosa que vou encontrar no final de semana. À vizinha gentil que mudou o corte de cabelo. Ao colega de sala com quem nunca troquei palavra. Ao senhorzinho cinéfilo que conheci numa festa pomposa. Àqueles que foram crianças antes e depois de mim. A quem não conheço e talvez nem exista.

Poderia também enviar flores. Secas, com a lembrança de um perfume distante. Em selos de antigas coleções, como uma mera ilustração do meu parco conhecimento de botânica.

Prefiro enviá-las úmidas, dentro da carta dobrada, para colorir e multiplicar as vidas pulsantes dentro dos envelopes.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Romper os muros

Medo é igual castanha-do-pará: na dose certa é super saudável, mas na errada te leva à morte.
Lembro do medo que senti quando, ao atravessar o Rio Araguaia voltando de um passeio em família, a canoa começou a afundar com isopor, panelas, cachorro, minha vó... Eu estava sem colete salva-vidas (imprudência das grandes) e no bico da canoa, que foi a primeira parte a afundar, justamente no canal, o trecho mais profundo do rio. Sem pensar muito, pulei da canoa, nadei até o concreto depois do canal e esperei até algum pescador me puxar para fora da água. Quando eu olhei pro rio, minha família inteira boiava, cada um segurando uma coisa, e a minha mãe... agarrada na coleira do poodle. Morro de rir sozinha quando lembro dessa cena (apesar de na hora não ter tido muita graça, rs). O medo me fez sair da canoa, nadar, chegar primeiro e assistir àquele festival de pessoas boiando. Mas eu também poderia ter ficado na canoa e afundado no medo e no rio.

Lembro de umas histórias que minhas tias da Bahia contavam sobre os valentões que morriam nos remansos do Rio Corrente. Cada uma mais escabrosa que a outra. Eles não tinham medo de nada; logo, morriam afogados, enquanto os que tinham medo de entrar no rio, morriam de tédio. Eu tentava estar ali, no meio-termo, administrando o medo de modo que pudesse entrar no rio mas também sair viva dele.

A máxima que diz que o medo de tentar é pior que o fracasso já é consagrada. Mas muita gente não liga não. Quer viver sua vida sem aventura, no seu escritório organizado, seu círculo restrito de amizades, seus programas semanalmente premeditados. "Se você é feliz assim", diria eu, mas não direi. Porque pessoas assim, desse jeito que em certa medida já fui, não têm como ser felizes, porque se arrependem. "Zona de conforto é zona de perigo", digo eu em qualquer circunstância, inclusive em meus perfis em redes sociais. Isso alimenta a minha vontade de conhecer gentes, países, culturas, comidas, experiências diferentes.

Esses dias deixei pra trás meu medo do ridículo. Que experiência libertadora. Fui pra balada com o marido toda comportadinha, cantei uma musiquinha no karaokê toda tímida (ganhei como prêmio um caderno de atividades da Turma da Mônica) e a metamorfose aconteceu quando o DJ começou a tocar as piores músicas dos anos 90. Um rapaz obeso, que decerto era o animador da casa, subiu no palco e começou a fazer to-das as coreôs, de Planeta Xuxa a TV Colosso, passando por Dominó, Kátia e outras pérolas. Como nós admiramos aquele moço - que mais pro fim da noite estava vestido de Angélica, fazendo uma performance de "Vou de táxi". Quando me dei conta, estava dançando o tema de Maria do Bairro (aquela novela mexicana "ma-ra-vi-lho-sa" estrelada pela Thalia) ao lado do admirável rapaz, e depois Macarena, e depois o pagode do Grupo Molejo. Acho que meu marido nunca se divertiu tanto comigo em uma balada. Acho que eu nunca me diverti tanto comigo mesma.

Destravemos as nossas existências! Percamos o medo do ridículo, de se aproximar, de conhecer!
Vamos romper os nossos Muros de Berlim! 

A performance de "Vou de táxi" que me fez virar fã desse rapaz.
Procurei-o na saída pra dizer que ele era mil vezes melhor que a Angélica.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Do mundo, "que lua" :)

Caminhando numa praia em Lagos, Portugal, há oito anos.


Ao notar que eu estava na estrada de novo, uma amiga comentou que ultimamente eu andava muito "do mundo". Gostei desse trocadilho acidental. Porque a experiência dessas andanças nunca foi tão espiritual. Corpo e alma se entrelaçam. O encontro consigo mesmo te abre para o encontro com o Outro. E é assim que sempre quero sentir. Aberta. Atenta. E grata.

Já que a maior distância a percorrer é a de dentro.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O silêncio dos gorilas




Café da manhã com um amigo. Depois de alguns goles de chá, ele quebra o silêncio e diz: "Geórgia, vou te contar sobre o silêncio mais lindo da minha vida". Assim como a manteiga no brioche, meu coração simplesmente derreteu (porque confiar e ouvir sobre silêncio é tarefa delicada e especial).

Lá estava ele, há dez anos, com seu gravador e sua câmera, entre um grupo de pesquisadores e turistas que se dirigiam a um lugar onde viviam os gorilas em Ruanda. Durante o trajeto, o guia apresentava as recomendações, entre as quais manter uma distância mínima de seis metros daqueles animais majetosos, lindos e gigantes. Todos na van estavam eufóricos, talvez não tanto quanto os gorilas jovens, ele me disse. Os filhotes brincavam muito, enquanto os adultos, simplesmente se davam à vista em sua serenidade e mistério. Após a sua experiência única com os gorilas de Ruanda, ele, assim como todos, retornou à van no fim do dia. Mas a euforia inicial fora substituída por um profundo silêncio.

Abaixei a cabeça para beber meu chá já frio e disfarçar os olhos marejados. E agradeci em silêncio o presente que fora ouvir aquela história.

Comentei sobre "o silêncio dos gorilas" com a minha kalyanamitra ("amiga espiritual", em sânscrito), que fui visitar há alguns dias. E em cada pausa do meu relato daquele relato sentia que eu também buscava um silêncio dos gorilas para chamar de meu. Em mim, naquela pequena viagem, nos livros, gestos, paisagens percorridas e imaginadas. Havia acabado de chegar, depois da noite mal dormida no ônibus.

- Amanhã estamos programando um stand up. Não fosse isso a gente podia subir a Pedra da Gávea hoje...
- A gente pode subir a Pedra da Gávea hoje e ir pro stand up amanhã, oras. - disse eu, na minha completa ignorância do que era a Pedra da Gávea e o tal stand up.
- Então vamos!!!! - depois eu entendi o entusiasmo dela.

Fomos à casa dela para nos preparar para subir a Pedra. No caminho, ela me falava de um de seus professores de teatro, o Lolô, cujos exercícios levavam os alunos à exaustão física e a uma interpretação entregue. "Vai coçar, vai doer, vocês vão querer parar. Quando isso acontecer, aí é que vocês precisam continuar". Inevitável associá-lo ao meu lado "esforçado". Esforço demais, energia demais, eu precisava desapegar disso para alcançar a leveza. Precisava me livrar do meu próprio Lolô. E ela, que era leve demais, precisava do Lolô com ela. E a gente se divertia com a nossa sintonia às avessas.

Ela me levou para a Pedra da Gávea com uma outra conhecida. Meu entusiasmo era do tamanho da minha vontade de estar em silêncio (ela entendia), mas o alto astral da nossa companheira só podia ser expresso em palavras, muitas. O esforço físico da trilha me fez abstrair e focar na respiração, no ritmo do passo, nas raízes, terra e pedras que se tornavam cada vez mais íngremes e irregulares. Quando chegamos à carrasqueira, eu pensei ter atingido meu limite. Ela via degraus onde eu via pedras lisas a quase 90 graus. O esforço agora era físico e mental. Não me lembro de ter sentido um medo tão grande de algo que realmente pudesse me matar. Para pisar nas pequenas fendas das pedras, eu precisava estar descalça, tinha que necessariamente olhar para baixo e para cima, usar força e peso com inteligência. E acreditar. Minha kalyanamitra não me deixou desistir. Depois de alguns minutos (podem ter sido dez... ou trinta), "com a força de Lolô" e a ajuda dela, consegui subir. Fui a terceira a chegar ao topo da Pedra.

No topo da Pedra da Gávea


O primeiro movimento do meu silêncio dos gorilas foi ali. No topo da Pedra, aquela paisagem incrível do Rio de Janeiro me fez esquecer o medo, a iminência das cãibras, as pernas raladas, a pele queimada e sensível de mãos e pés no contato com as pedras. De longe, foi a coisa mais difícil que consegui realizar em toda a minha existência até aqui. Deitei na pedra longe das meninas, sob o sol das duas horas da tarde (tavez), e me permiti algumas poucas lágrimas em silêncio. Era dor e contentamento. Era a minha despedida de Lolô, daquele esforço imenso em sua história e diverso em seus motivos.

O segundo movimento aconteceu quando ela me mostrou a "sua" pedra. Do outro lado do topo, havia uma pedra pontuda, a mais alta, que depois de tudo aquilo eu só queria contemplar de longe. Ela mostrou como se subia e como se descia, subiu, desceu, subiu e lá ficou. E vendo-a lá em cima, com seu cabelão ao vento tão adequado àquele azul, eu só podia existir em gratidão.

Depois de uma descida muito difícil (possível também graças a dois "anjos da guarda" que estavam lá em cima quando chegamos e desceram conosco), com a floresta acordando ao cair do sol, sem Lolô, com muitas palavras, pouca paciência e músculos que não respondiam ao mais simples comando de "não tremer", fomos almoçar. Eram quase oito da noite.

O terceiro movimento do silêncio dos gorilas aconteceu no retorno para casa, tal como na história do meu amigo em Ruanda. Estava sentada entre a minha amiga e a nossa "alegre companheira das palavras". Elas conversavam sobre a experiência na pedra, perfis astrológicos e outras coisas de que não me recordo. Eu só conseguia olhar pra frente, fixamente, até que meus olhos se fechassem, tal como a minha bolha escandalosa de silêncio.

O Lolô, esse não voltará. Deixei no topo da Pedra. Ela já deve ter voltado lá pra pegá-lo pra si.









quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Quando o universo afaga



Se você sorri com os olhos. Consegue, a cada passo, olhar o céu e o chão. Acalenta com paciência seu querer. Cultiva alegrias grandes e pequenas. Aceita as contradições e vive a dor e o prazer com coragem. Se se transforma a cada encontro. E se se permite estar alegre e triste.
Então estamos irremediavelmente conectados.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Revolução


Após três semanas de recesso, voltei ao ensaio do coral. Ensaiaríamos uma nova canção. Após ler a linha do contralto, o regente convidou a unir todas as vozes naquele trecho. De repente, caiu um cisco no meu olho e eu não podia me conter. Tossi, bocejei (afinal, lágrimas saem quando se boceja, às vezes), e a companheira de contralto do meu lado me olhando. O trecho era esse:

tu boca que es tuya y mía
tu boca no se equivoca
te quiero porque tu boca
sabe gritar rebeldías

(...)
te quiero en mi paraíso
es decir que en mi país
la gente viva feliz
aunque no tenga permiso


Acho que nunca cantei em grupo com tanta emoção e iminência de embargo na voz. Nada saiu perfeito, era a primeira leitura em grupo. Não importava. Saí do ensaio com o meu idealismo reafirmado.

Nunca fui pessimista, fatalista, "realista", apesar de já ter tentado. Por outro lado, nunca tive o típico perfil "revolucionário", de participar de movimentos estudantis, usar boina e baby look do Che Guevara (mentira), acompanhar diretamente os movimentos de esquerda ou direita (a não ser na dança e nas artes marciais), ou sabe-se lá o que são os partidos políticos atualmente. Até hoje não suporto aquele tipo de gente que aumenta o volume da voz para "convocar as massas para a revolução", seja em horário de propaganda eleitoral, seja em reunião de professores na universidade. Gente cuja bandeira é a da "resistência", sobretudo a novas ideias, posturas e possibilidades de diálogo - o termo "teimosia" ou "chatice" seriam mais adequados. E com tantos estereótipos quase automáticos, acabei tomando birra da palavra "revolução".

Aí saí do ensaio do coral pensando sobre o significado da revolução. Fui ao dicionário e, antes do conceito político ou de menções históricas, lá estava: "ato de revolver". E buscando em "revolver": "mexer", "misturar". E então me dei conta do quão revolucionária eu buscava ser, educando o meu filho, lutando para manter a família em harmonia, as contas em dia, mudando de cidade, realizando os projetos idealizados, resistindo à imediatez e à impessoalidade do mundo, saindo da minha zona de conforto, buscando novos limites para o corpo e para a alma, me dedicando de todo coração ao ofício de professora. Todo dia eu me revolvo, adubo, rego, planto e colho, afinal.

Esse negócio de viver é muito revolucionário.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Uma gota é muito



Aquele movimento não intencional provocado por algum misterioso magnetismo
(que te leva a outras vidas, épocas, possibilidades e novos movimentos)
mostra, em seus turvos caminhos, que o tempo é um só e a vida é um loop;
que passado, presente e futuro diluem-se num agora potente e pesado
de memória, vontade e medo.
Um concentrado de todas as cores e sons:
borrões ruidosos intragáveis e irreconhecíveis em dose única,
colocados em vidros pequenos e administrados em conta-gotas
para tornar mais convincente o autoengano da normalidade.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

No dia em que saí do cronograma


Um dos sebos descobertos no dia em que saí do cronograma


Resolvi dar uma volta.
Indo na direção oposta à da caminhada habitual, descobri quatro sebos perto de casa.
Não estudei e os livros tão esperados chegaram pelo correio.
Não me dediquei aos trabalhos pendentes e acabei encontrando novas fontes de pesquisa.
Não escrevi no blog e me deparei com alguns livros de cabeceira do passado. 
Saí também da dieta, e encontrei sobre a mesa da cozinha um pacote de bolachas, daquelas que eu comia na infância, esquecido por uma amiga.
Esqueci-me dos problemas da vida prática e descobri que eles estavam resolvidos. 
Assim como no dia em que eu o fiz e como nos dias em que o cumpri, no dia em que saí do cronograma eu fui feliz.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Silêncio


Família passeando no Beco do Batman. Foto: Mauro Ueda
E se algo quebrar o silêncio, que seja a risada do nosso filho ou a porta se abrindo pra você chegar.
Hoje é dia de respirar fundo e sorrir com os olhos fechados.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Violeta de Outono no meu inverno


Capa do disco homônimo, o primeiro deles, de 1987

As "minhas" bandas mais amadas eu não descobri na internet, mas nos sebos. Assim aconteceu com Yo La Tengo, Kula Shaker... e Violeta de Outono. Caminhei tanto pelo centro de Goiânia carregando esse disco aí da foto pra cima e pra baixo, dentro do meu discman. Passou comigo por tantos lugares, dentro e fora da alma. As canções melancólicas, repetitivas como mantras, me tiravam constantemente na realidade do sol quente, do calor dentro do ônibus, do horário da aula, dos trabalhos da faculdade. Porque são sombrias e densas, ao mesmo tempo com um frescor que devia vir do timbre (então) jovial das vozes, do minimalismo criativo de seus ritmos, do uso "oriental" das escalas menores e das cores frias.

Sempre tive um carinho gratuito por quem gostasse de Violeta de Outono. Porque era raro, pelo menos pra mim, em Goiânia, encontrar pessoas que a conhecessem. Da época da faculdade, uma das minhas bandas goianas preferidas chamava-se Orquídeas, claramente inspirados nela, no som e no nome. Orquídeas fez poucos shows; vazios, se bem me lembro, mas cheios de sorrisos meus.

E assim me sentirei hoje, no meu primeiro show da Violeta de Outono, que já têm 30 anos de banda, quase a minha idade. Certeza que vai estar lotado, que eu já gosto muito de todas as pessoas que vão estar lá e que eu mais uma vez vou ficar imóvel e comovida, dentro da minha bolha musical, lembrando de tantos momentos corriqueiros no centro de Goiânia e de que eu ainda tenho muitas experiências como esta pela frente. Meu inverno em São Paulo é florido e tem cor de Violeta.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sobre âncoras e trampolins


Como se concentrar nos estudos, aprofundar o pensamento, conhecer melhor alguém, ter consciência do próprio corpo, ditar o próprio ritmo - que não é ou não deveria ser o da pressa automática do mundo - , sem algo que nos tensione, desafie, verticalize ou simplesmente nos convide ao mergulho? Como ser adulto, despedir-se da casa dos pais e criar novas raízes, vínculos, discursos, sem ter qualquer referência, sem se lembrar da infância ou nada ter aprendido, colecionado, compartilhado enquanto antigas raízes nos mantinham em um lugar para onde, ocasional e disfarçadamente, queremos voltar?

Como saltar, enfrentar o medo, superar o tédio da comodidade programada e pular para o desconhecido sem pensar no que há nos bolsos, no penteado prestes a desmanchar ou se o relógio é à prova d'água? Como se lançar no abismo sem o necessário impulso, entusiasmo, oxigênio e vontade de um mergulho profundo?

Os trampolins nos levam às âncoras.
As âncoras norteiam. Suportam o peso da escalada para que avistemos - e saltemos - de novos trampolins.





terça-feira, 1 de julho de 2014

Cantar é difícil


Porque assumir seu próprio timbre é se expor da forma mais honesta. Porque o que vem de dentro emociona muito mais e por isso está mais fora de controle. Porque a emoção deixa a voz embargada, a respiração inconstante, as notas oscilantes. Porque você precisa respirar profundo, vibrar e expulsar energia de si para acontecer. Porque é preciso experimentar, se conhecer, buscar os lugares de cada nota, vogal ou consoante dentro de si mesmo. Porque cada coisa vai vibrar em algum cantinho. Por isso: porque você precisa explorar lugares dentro de si, para poder se lembrar e voltar a eles quando quiser. Pelo fato de você ter, na liberdade das mãos, a possibilidade do gesto. Porque se conhecer se expondo assim exige coragem e generosidade consigo próprio. Cantar é difícil. Cantar é preciso.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

O "nós" como meio






























Desejos vetorizados - ainda não concretizados; escritos, lidos, pouco vividos. A dificuldade do exercício do óbvio: do desapego do próprio querer em nome do "querer-fazer junto". Reconhecer que não existe gentileza, amor, beleza se não há quem as gere, doe, receba, sinta, distribua.
Obviedades isoladas podem ser interpretadas como sintomas de loucura.
Que se libertem das vigas e em nós ganhem vida.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Proposta 

"Eu quero uma casa no campo"
 
Construamos a realidade recorrente no nosso sono. Que a façamos gritar, que lhe imprimamos cores ácidas e a vivamos por inteiro, a cada pílula, a cada instante. Diluamos as cores em água e tinta branca, equilibremos a força e a acidez inventando matizes, dinâmicas, texturas. Construamos então a nossa casa - aquela que habitava paralelamente nossos sonhos - e dilatemos, a cada dia, a alegria do encontro.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Túnel em São Paulo, 2005.
tantos pés, tantos caminhos
tão pouco tempo
tanta sede, tanta água
tão pouca vontade
meus pés frios na água suja
de tantos dejetos e pisares
e o pesar de que o caminho
pra pouca vontade
é impossível de percorrer a pé.

(a pé) o suor que percorre o corpo é frio
no rosto, pescoço, mãos.
dois pés oprimidos e uma cabeça esvaziada
percorrem lugares estrangeiros.
Se aquelas paredes,
escadas cheias de lodo,
móveis com cheiro de mofo
fossem vistos e sentidos
junto com aquela constante sensação de não pertencimento
e aquela vontade de evaporar para nunca mais chover!

(Goiânia, 7 de dezembro de 2005)







quarta-feira, 25 de junho de 2014

Touch skin


Por Banksy

Devolvam-me a paciência e a coragem de olhar nos olhos. E a crença resignada de que o médico já vai chamar, o engarrafamento em breve se desfaz, o namorado logo chega. Restituam-me o intervalo para ler as notícias, terminar o livro, compor, conversar sem saber de antemão o que se passa na vida alheia. A opção de estar perdido na rua. E a vontade do esforço de simplesmente esperar, olhando o teto, as pessoas, seus sapatos, os insetos na ante-sala.

Eu quero a espera, o prazer da surpresa. Ter que sair de casa para descobrir o que se passa, pedir informação na rua a qualquer desconhecido. Abandonar a mão equipada para olhar ao redor: quero a paisagem e o toque caloroso.

Menos touch screen. Mais touch skin.

terça-feira, 24 de junho de 2014


Muffins mofados


Te conheci naquele sarau em Porto Alegre. Bebi com sofreguidão todas as suas palavras. Era uma carta endereçada a alguém que um dia você amou. Um trecho, apenas, sem título, sem página, início ou fim. A deixa era aquela, as palavras caindo e eu tentando resgatá-las, ao mesmo tempo protegendo o arrebatamento que era só meu.
Te procurei nas prateleiras. Abri todos os seus arquivos em pesquisas cegas, buscando coisas de que não me lembrava mais. Morangos mofados, talvez fosse esse, uma memória inconsciente ou um simples palpite. Edição esgotada, o rapaz distraído sorria, sem se dar conta do peso trágico daquela notícia.
Fui para casa com o Inventário do Ir-remediável, grandes manchas no miolo, capa desgastada de uma edição quase artesanal. Eu, que queria Morangos, não digeri muito bem o Inventário, nem da primeira vez, nem da segunda.
Depois de alguns anos fiz um limpa na estante. Nova chance de te conhecer, por outras vias, em outro lugar, sem esperar por morangos, cartas ou arrebatamentos em saraus. Você se mostrou sensível, dramático e amargo. Te coloquei no lugar sem tanta comoção.
Até que um dia te levaram com o meu consentimento. Te devolvo em breve, me garantiu o amigo no e-mail. Aí descobri que me fazia falta. O capricho de querer te ver de novo quando não poderia era um incômodo. Em uma nova mensagem, aquele meu amigo, que te tornara objeto de tese, me fazia uma oferta que talvez julgasse tentadora, para que pudesse te levar para sempre. Não só disse não como pedi para que te devolvesse o quanto antes. Outras ofertas depois, ele desistiu, me devolveu você, com a capa ainda mais detonada e o miolo mole e úmido, desculpando-se da queda na sarjeta enquanto chovia. Não importava, você estava de volta.
Te levei pra passear na mochila. À espera de alguém, nos encontramos novamente. Os muffins vieram faltando apenas uma página. A cobertura de morango era doce demais para o meu paladar, que havia se acostumado com sobremesas mais amargas. Terminei o café (sem açúcar) e a página, tentando apaziguar aquela epifania.

(para Caio Fernando Abreu)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Banho de sal grosso



Limpei a casa, acendi velas e incenso. Salguei todos os cantos da casa e do corpo, engoli um copo, deixei pitadas sob as pálpebras. O abismo seduz pela proximidade: "É mais fácil ser triste que alegre". A curiosidade pela obscuridade do sentir, tantas vezes mais magnética, interessante e inspiradora que a vontade de equilíbrio. Mantra melodramático do homem ocidental travestido de louvação e exigência de romantismo. Um samba-exaltação do sofrimento e da vítima em dó maior, com letra suicida e melodia festiva. Ser vítima descolore e obstrui; sofrer cansa.
A corda bamba requer vontade, força e disposição. Disciplina, praticar o equilíbrio. Tantas modalidades olímpicas dependentes dele. Antes disso: tanta vida. Saber que a queda é provável e esperada e mesmo assim atirar-se, levantar, forçar as fraturas. Perdoar-se pelos erros e despedir-se deles, até o reencontro na próxima estação. Sentir que não seremos os mesmos - de qualquer modo não seríamos. E lembrar que sem os erros morreríamos também, de euforia e depois de tédio.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Garimpo



















A peneira balança.
Ficam as joias, em sua solidão, brutalidade e mistério.
Lama e pedregulhos escorrem pelos furos, levados rapidamente pela força da correnteza.
Os detritos mais inconvenientes e pesados,
aqueles que insistem em ficar,
são descartados pela força e vontade do homem.
Tão importantes, as impurezas todas.
Pela efemeridade ou pela insistência
que se afoga e se esvai diante da perene beleza.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Amor de um (para o Todo)

Por: Banksy

Amor pleno, encarnando-se, não se encana. Não se canaliza; contagia. Não aguarda resposta, simplesmente é grato por existir. Não se tem ou se consome, acontece. Não é palpável, mas faz doer. É quando ele nos lembra: somos frágeis. Desencarna-se no desapego, no abandonar dos pesos, quando o passado é passado e o presente é o que se tem. E então torna-se divino, posto que o destino é incerto. Mas é certo que esse amor, tão difícil de sentir, uma vez vivido, será sempre devolvido a quem amou. 
(escrito em 8 de junho de 2014)

terça-feira, 17 de junho de 2014

Razão para a lágrima


Hino Nacional e pamonha goiana: coisas que tocam fundo na alma


Por causa daquele som denso e misterioso que arrepia até o meu último fio de cabelo, vindo de dentro da Amazônia. Por causa do céu estrelado do interior do Maranhão. Por causa daquela comunidade quilombola que, sob os meus olhos curiosos e marejados, viveu a sua primeira experiência com o cinema. Por me emocionar com tanta musicalidade nas falas de amigos de todos os lugares. Por causa daquele maracatu que me fez vibrar todos os ossos numa tarde de domingo em Recife. Por causa daquele sarau em Porto Alegre, daquele show em Blumenau, dos biscoitos das minhas avós. Porque eu me lembro da inocência daquele velhinho do interior de Goiás puxando assunto com a minha mãe pela janela do carro. Do peso da matula do seu Waldomiro, a caminho da Chapada dos Veadeiros. Por causa de todas as músicas que meus pais me ensinaram a cantar, de todos os livros e filmes que eu amo. Por causa daquela sensação de exílio que às vezes me aperta o peito. Porque é quando eu me dou conta de que somos 200 milhões de pessoas com tantas histórias. E com tanta esperança, apesar de tudo. Porque somos todos tão diferentes e porque isso é lindo. Por causa das pessoas do interior. Porque elas são simples e sábias. Porque meu pai é da Bahia, minha mãe, do Tocantins, e eu, de Goiás. Por tudo isso, seja qual for a ocasião - Copa do Mundo, formatura da prima, abertura dos jogos do colégio - a lágrima está lá, prestes a cair, quando eu ouço o Hino Nacional brasileiro.

 Cravo com gengibre


Cravo
Gengibre


O cravo-da-índia (Syzygium aromaticum) é uma planta medicinal conhecida por suas propriedades anti-inflamatórias, antissépticas, cicatrizantes e analgésicas.

Vegetal nativo da Ásia, o gengibre (Zingiber officinale) é uma raiz tuberosa com ação bactericida, é desintoxicante e conhecido por melhorar o desempenho dos sistemas digestivo, respiratório e circulatório. 

Cicatrização, desintoxicação, alívio, frescor. 

Digestão, respiração e circulação de ideias.

Escrever é mastigar cravo com gengibre. Lentamente.
Bem-vindos.