terça-feira, 24 de junho de 2014


Muffins mofados


Te conheci naquele sarau em Porto Alegre. Bebi com sofreguidão todas as suas palavras. Era uma carta endereçada a alguém que um dia você amou. Um trecho, apenas, sem título, sem página, início ou fim. A deixa era aquela, as palavras caindo e eu tentando resgatá-las, ao mesmo tempo protegendo o arrebatamento que era só meu.
Te procurei nas prateleiras. Abri todos os seus arquivos em pesquisas cegas, buscando coisas de que não me lembrava mais. Morangos mofados, talvez fosse esse, uma memória inconsciente ou um simples palpite. Edição esgotada, o rapaz distraído sorria, sem se dar conta do peso trágico daquela notícia.
Fui para casa com o Inventário do Ir-remediável, grandes manchas no miolo, capa desgastada de uma edição quase artesanal. Eu, que queria Morangos, não digeri muito bem o Inventário, nem da primeira vez, nem da segunda.
Depois de alguns anos fiz um limpa na estante. Nova chance de te conhecer, por outras vias, em outro lugar, sem esperar por morangos, cartas ou arrebatamentos em saraus. Você se mostrou sensível, dramático e amargo. Te coloquei no lugar sem tanta comoção.
Até que um dia te levaram com o meu consentimento. Te devolvo em breve, me garantiu o amigo no e-mail. Aí descobri que me fazia falta. O capricho de querer te ver de novo quando não poderia era um incômodo. Em uma nova mensagem, aquele meu amigo, que te tornara objeto de tese, me fazia uma oferta que talvez julgasse tentadora, para que pudesse te levar para sempre. Não só disse não como pedi para que te devolvesse o quanto antes. Outras ofertas depois, ele desistiu, me devolveu você, com a capa ainda mais detonada e o miolo mole e úmido, desculpando-se da queda na sarjeta enquanto chovia. Não importava, você estava de volta.
Te levei pra passear na mochila. À espera de alguém, nos encontramos novamente. Os muffins vieram faltando apenas uma página. A cobertura de morango era doce demais para o meu paladar, que havia se acostumado com sobremesas mais amargas. Terminei o café (sem açúcar) e a página, tentando apaziguar aquela epifania.

(para Caio Fernando Abreu)

Nenhum comentário:

Postar um comentário